18 julho 2006

Crítica: Liberté

Finalmente o esperado aconteceu. Pela primeira vez na história deste blog um leitor decidiu pôr mãos à obra e contar de sua justiça. O Paulo Soledade escreveu esta crítica sobre uma das inumeras obras-primas de Martin Wallace - Liberté. Aqui vai o resultado e muito obrigado pela participação.

Contexto Histórico
E o ritual mantém-se. Na varanda a fumar um cigarro, meia-noite, meia-noite e meia, mais coisa menos coisa, e surge a pergunta mais aguardada da noite.
- Então e hoje jogamos a quê?
Todos se olham mutuamente, fazem um som mais ou menos gutural a lembrar Xanana Gusmão e o primeiro atira um, normalmente despreocupado, “por mim pode ser um Liberté”. Os outros todos disfarçam como se nem sequer lhes tivesse ocorrido tal ideia e, com um ar ligeiro vão dizendo, “por mim pode ser”, “por mim também”, “sim, tudo bem”, “olha, nem me tinha ocorrido, mas pode ser”, “ a mim parece-me bem”, “ok, sim”.
Ouvem-se tantas vozes a anuir que, de repente, parece que duplicou o número de jogadores. Das quatro ou cinco bocas habituais ouve-se uma dúzia de respostas. Parece que, para além do ego também o alter-ego responde afirmativamente a Liberté. E consegue-se ouvir. Juro.
Então cá vai. Mesa disposta, cerveja em riste, os olhos vão brilhando e, no fundo, no fundo, uma táctica escondida. “Hoje vou ganhar”, lê-se nas entrelinhas. Porque com Liberté todos acham que “desta vez é que é”.

Componentes
Um tabuleiro com o mapa de França dividido em 6 regiões, de cores diferentes, cada uma dessas regiões dividida em 5 “distritos”. Alguns desses distritos são ainda distinguidos com as letras CR (Contra-Revolução) e outros com um ou dois pontos vitória (VP).
Na parte superior do tabuleiro, numa grelha de 0-20, fica a contagem dos VP. Do lado esquerdo, a grelha das eleições, marcada de 0-16 votos.
Um rectângulo na parte inferior (Battle Box) e, finalizando, uma grelha que resume todos os turnos de Liberté.
Depois temos os tokens e os blocos. Pazadas de madeira, divididas em 6 cores (algumas de gosto muito duvidoso), uma para cada jogador (tokens) e ainda umas muito suspeitas imitações de rebuçados Halls (mas sem a covinha para ajustar o indicador), divididas em mais três cores. Azul (moderados), branco (monárquicos) e vermelho (radicais).
São estes blocos de três cores da bandeira francesa que inundam o tabuleiro e cada um dos territórios para mostrar qual deles irá ganhar as eleições que se seguem.
Sobra ainda o motor do jogo, as cartas. Dois baralhos de cartas (A e B), de aprumada qualidade e com personalidades reais ligadas à Revolução Francesa (Danton, Robespierre, Napoleão) e cuja função é, para além de fazer desesperar os menos afortunados, abrir-nos o leque de opções a realizar no nosso turno.



Como jogar Liberté
A mecânica de Liberté são as cartas. São elas que decidem o jogo. Ou melhor, são elas que decidem a estratégia que cada jogador pode/deve adoptar em função delas próprias.
O jogo resume-se a quatro turnos onde cada jogador pode fazer uma de duas acções:
Biscar uma carta ou jogar uma carta. Biscar uma carta serve unicamente para aumentar o leque de opções de cartas a poder jogar na próxima jogada. Jogar uma carta pode servir para três acções distintas:
1 Colocar o número de blocos que essa carta indica na região que essa carta indica.
2 Ao invés de colocar os blocos no tabuleiro colocar um token pessoal na Battle Box.
3 Através da utilização de cartas com acções especiais, retirar uma carta de um adversário do seu display, retirar um bloco, ou uma pilha de blocos, de uma determinada facção, de um determinado território.

Quando se colocam no tabuleiro todos os blocos de uma determinada facção, ou seja, quando se esgotarem os blocos de uma determinada facção, termina o turno e há eleições.
Resolve-se a Battle Box, onde vence quem está em maioria, e atribuem-se os pontos vitória correspondentes à guerra em causa (cada turno, excepto o primeiro, tem uma guerra a disputar na Battle Box e cada uma dessas guerras tem victory points diferentes) contam-se as facções que estão em maioria dentro de cada território, tendo para isso também, de resolver alguns conflitos que derivam de empates e, tudo apurado, contam-se o número de votos que cada facção (vermelhos, azuis, brancos) amealhou para si.
Depois vê-se quem foi que conseguiu mais blocos da facção vencedora (5VP) segundo classificado (2VP) e o líder da oposição (3VP).
Assim, em teoria, há quatro eleições e, portanto, quatro vezes atribuição de pontos vitória pelas eleições. Em teoria. Na prática, nem sempre existem quatro eleições porque há duas condicionantes de vitória que tornam este jogo uma verdadeira obra-prima. A sério. Uma obra-prima.

A Contra-Revolução (CR)
Uma das chamadas vitórias por morte-súbita de Liberté é a contra-revolução. Como disse no início, no tabuleiro existem alguns territórios com as letras CR. São, historicamente, territórios de grande importância no contexto territorial de França. Ora, a CR é, nem mais nem menos que a não existência de Revolução.
Quando os monárquicos (brancos), em qualquer altura do jogo, desde que no terceiro e quarto turnos, estiverem em maioria em sete territórios assinalados com CR, significa que alcançaram a tão almejada contra-revolução. Já não há Liberté, Fraternité, Égalité. Significa que quem ganha o jogo são os monárquicos e, portanto, quem tem mais blocos brancos colocados no tabuleiro e também nas suas cartas. Neste caso, os VP’s não contam para nada.
A vitória dos Radicais
Também pode existir uma vitória por morte-súbita dos radicais (vermelhos). Isto acontece quando, depois de uma eleição, os radicais conseguem 17 ou mais votos. Ou seja, tecnicamente, isto significa uma vitória de goleada. Mas é bem possível.
Mais uma vez os VP’s não contam para nada. Vence quem tem mais blocos vermelhos decorrentes da eleição e também nas cartas.



Resultado Final
O mestre Martin Wallace brinda-nos aqui com, na minha opinião, a sua obra-mais-que-tudo. Porque é um area control game para gamers, não é nada light, é até muito caótico, onde cada um de nós pode fazer o seu melhor pelos VP’s, tresanda a espírito de Revolução (guilhotina, generais, o tema está sempre presente), as regras são muito inteligentes (o facto de a CR nunca poder acontecer em resultado de uma eleição faz todo o sentido), e a pièce de resistance que é o facto de qualquer jogador poder ganhar o jogo fora dos VP’s, com uma vitória alternativa.
Tem algum factor sorte associado mas não é determinante para o jogo. Já vi vitórias por morte-súbita que foram conquistadas em circunstâncias muito adversas.

Resultado Final Alternativo
“Hoje não tive sorte nenhuma. Não me calhou uma única carta de três.”
“Ó cara*** ainda gozas. F***-se. Quantos generais é que tiveste? É que eu nem os cheirei.”
“E tu fo***te-me. Guilhotinaste-me dois gajos pá. Assim não dá”
Só o vencedor é mais razoável. “Eu quando vi que não tinha hipótese nenhuma de ganhar o jogo nos victory points tentei uma contra-revolução porque me pareceu que ele (aponta) também podia estar interessado nisso”
“Eu? (o apontado) Eu não tinha interesse nenhum na contra-revolução. Aliás eu até estava bem colocado no terceiro turno e ia ganhar a Battle Box se não fosse este cara*** a guilhotinar-me o meu general. Fo**-se! Hoje vais a pé para casa. Eu não te levo!!!”
E é assim que termina uma noitada de uma revolução que, neste caso, esta noite, até nem aconteceu, porque ganharam os monárquicos. Mas para a semana todos vão querer jogar novamente. Aposto. E não fora algumas situações desportivas muito mal resolvidas e que nos deixaram com alguns sapos entalados na garganta, até sairíamos daqui vestidos de ceroulas e a cantar a marselhesa.

Paulo Soledade


17 julho 2006

And the winner is...

Thurn und Taxis

TCHAM TCHAM TCHAM TCHAM!!!!!

É verdade sim senhor: Thurn und Taxis é o grande vencedor do Spiel des Jahres, permitindo assim ao intrigante Andreas Seyfarth vencer o ambicionado troféu, pela segunda vez na sua carreira, embora desta vez em parceria com a sua bem amada e sensual esposa.

Curiosamente, não conseguiu vencer este afamado prémio com a sua maior criação, o consensualíssimo Puerto Rico - que lidera o ranking do BGG desde o tempo em que os dinossauros mandavam neste planeta e um meeple era feito em pedra e pesava 300 Kgs - tendo perdido em 2002 para o elegante, mas desconhecido, Villa Paletti.

O prémio para o melhor jogo infantil vai para Der schwarze Pirat, publicado pela HABA e que eu, confesso, nunca ouvi falar. Posso adiantar que o título quer dizer "O pirata negro", em português, e que a HABA é conhecida por editar jogos de alta qualidade para os mais novos. Se quiserem saber mais, sigam o link! :P

O Shadows over Camelot e o Caylus venceram os prémios "Fantasia nos jogos" e "Jogo complexo", respectivamente. Mas isto já se sabia desde que foi tornada pública a lista de nomeados.

O grande derrotado é, mais uma vez, o grandíssimo Reiner Knizia, que apesar de desenhar e publicar uma média de 3500 jogos por ano e de ter, pelo menos, 50 jogos no top 10 do boardgamegeek, há mais de 100 anos, nunca conseguiu vencer. O seu Blue Moon City parecia ter boas hipóteses de quebrar esta maldição, mas ainda não foi desta.

Em relação ao vencedor, que acabou por ser o esperado, fica prometida uma review, neste blog, para antes do fim da semana! Salvé aleluia, salvé!




14 julho 2006

Session Report: O início da civilização

Desde o mês passado que os dias de árduo trabalho que caracterizam a minha vida diária, têm-se tornado felizmente numa festança e, não são de todo, raras as vezes em que anseio que a manhã desperte ao som do despertador para iniciar novamente a minha labuta.
Face à minha contínua boa disposição matinal, a minha namorada desconfia:
- Hum...sempre tão bem disposto, andas de certeza a preparar alguma.
E na verdade ando. Nem ela imagina o quê. Se colocar uma peça de desastre em H9 tramo a vida ao Pitris e posso atacar sem problemas o Rei do fs1973.
São pensamentos brilhantes desta extraordinária envergadura que me acompanham enquanto me visto, saio de casa e apanho o comboio. Ainda para mais, nesse férreo particular, não me posso queixar da sorte. A estação tem uma grandiosa vista para o oceano Atlântico que acaba por servir de inspiração a novas movimentações. O meu processo mental já associa aquela vasta cor azul ao rio Tigre ou então ao Eufrates, dependendo da disposição. Portanto, é de prever que as boas ideias se sucedam.
Se colocar uma quinta em D15 e outra em D16 posso construir um monumento e ganhar alguns pontos pretos que bem preciso.
Chegado ao trabalho, este idílico desvairo entra em colapso. Não por o próprio desvairo em si não ser brilhante, mas apenas porque vou ter de aguardar mais um pouco para o pôr em prática. Por azar, a minha chefe chegou mais cedo e já está de olho na malta. Ainda, para cúmulo do infortúnio, deram-me a secretária em que o plasma entra totalmente no campo de visão da senhora.
Atendo uns telefonemas e faço outros tantos, porque a vida é dar e receber e sempre é algum tempo que passa. Mais tarde ou mais cedo ela terá de ir a qualquer lado. Tirar fotocópias, mandar um fax ou mesmo, e isso era uma autêntica benesse de Deus, retirar o carro de segunda fila. Infelizmente depois da duas multas que recebeu nunca mais voltou a arriscar este tipo de manobras. Seja como for, é bom mantermos todos o segredo que fui eu o responsável pelos telefonemas às autoridades competentes. Não o fiz por mal, até porque não sou um gajo desse tipo, mas convenhamos, estava quase a ganhar um jogo, faltava apenas declarar guerra religiosa ao Rui Conde para a vitória ficar definitivamente comigo e a mulher não saía do lugar. Por vezes murmurava:
- Hoje estou mesmo a ver que não vou sair daqui tão cedo.
Foi um acto desesperado, eu sei, mas que teve a sua função memorial na minha existência. De facto venci um jogo com a cabra, que dizem os entendidos nestas coisas da estatística, que é a coisa mais difícil de conseguir nesta obra-prima de Reiner Knizia.

Às dez e meia tudo continua na mesma. A jogada na minha cabeça e nada, a chefe continua a revirar papeis, a consultar o e-mail a telefonar para este e para aquele, mas nada de sair do poiso. Vou ao balcão atender as reclamações veementes de algumas almas desamparadas para quem a justiça é algo de tenebroso e motivo das mais variadas raivas:
- Os advogados são todos uns corruptos que fazem joguinhos entre eles para receberem por fora. Os juizes a maior parte são uns paneleiros de merda que só sabem é levar no cu. Pensa que eu não sei destas coisas todas? Claro que sei. Trafulhas, pá!
Por vezes gostava de saber o que estas almas desamparadas pensariam da posição das minhas peças no tabuleiro. Se iriam atacar o Hugo Caetano ou se preferiam esperar por ter mais templos. Se atacariam o reino da esquerda ou o da direita onde o Mustrengo tem o seu maior poder.
No meio desta loucura oiço uma buzina. Uma buzina salvadora. O meu sorriso é indisfarçável, a tal ponto que a alma desamparada se toca:
- Você ri-se não é. Acha piada. Não é você que foi enganado por isso acha piada. Porque se fosse você o enganado concerteza que não achava piada nenhuma.
Mas, felizmente, a minha chefe chega em auxílio:
- Vou ali abaixo estacionar o carro, se alguém perguntar por mim demoro 5 minutos.
Descanso-lhe a preocupação, que sim senhor, que não se preocupasse que eu dizia isso e o que mais achasse necessário. Virei-me para a alma desamparada e tratei de restabelecer os índices de confiança perdidos.
- O Sr. faça o seguinte. Vá ao tribunal e veja o processo. Depois passe por cá, fale comigo e vamos ver se resolvemos isto duma vez por todas. Mas primeiro tem de consultar o processo.
O homem lá parte para consultar o processo e corro para o PC. Clico no Explorer e aguardo.
Ora bem, mercado para A1 e outro mercado A2. Construo um templo com verde e preto. Finize action.
Já tá. Vamos lá ver o que os outros fazem. Mesmo a tempo já oico os passos da chefe.
- Aconteceu alguma coisa enquanto fui estacionar o carro, ou estás só feliz por me veres de volta?


06 julho 2006

O que para aí vem

Acabada que está esta fase de exames (espero bem que seja a última) e o curso quase, quase, terminado, resta-me muito tempo para finalmente me dedicar de alma e coração ao jogos de tabuleiro e aqui ao blog. Para já a minha nova casa (que na verdade parece um palacete daqueles que Eça de Queirós descrevia pormenorizadamente à boa maneira dos realistas), está praticamente habitável e nela anseio ter muitos e longos encontros de jogatana não só com jogadores experientes como também com inexperientes. Há uma quantidade de malta que quero juntar, nomeadamente os meus amigos de infância que perdi o contacto regular e que agora, com um poiso em condições, se pode reunir para um fondue, um vinho tinto e uma jogatana. Na minha concepção de dia bem passado tem de haver obrigatoriamente lançamento de dados, ou senão o acto de confraternizar não é totalmente bem sucedido.
Foi a pensar em grandes jornadas que já estou a cuidar tanto cuidadosamente como carinhosamente da minha garrafeira. Bem sei que a maior parte do pessoal com quem jogo emborca cerveja e fica contente. Mas não, a verdade é que não se pode beber uma cerveja enquanto se joga, por exemplo, ao monumental Struggle of Empires. Um jogo deste calibre necessita dum vinho tipo Cartuxa de 2002 e dum charuto Romeu e Julieta enquanto se trata pacientemente da diplomacia com os parceiros de mesa. Claro que isto sou eu aqui a magicar feito parvo, porque devia ser bonito explicar à minha namorada a necessidade de gastar 15 euros num vinho e encher a sala de fumo por causa dum jogo.
Mas seja como for há jogos que exigem uma boa pinga e não devem ser tratados à laia bárbara com cerveja a rodos e SG Filtro. Há que ter um certo respeito pelo trabalho do autor e acima de tudo saber receber os convidados.
Bem, mas continuando no assunto, tenho pois em casa algumas caixas por abrir que espero que vejam a luz do dia neste mês. Railroad Tycoon para a malta mais dada a jogos de digestão difícil. Estava a pensar numa garrafa de Piriquita para acompanhar o acto. Acho que se ajusta. Pensava também numa pequena selecção de carnes frias, mas tenho medo que a malta fique com os dedos engordurados e me encha o tabuleiro, o dinheiro e as cartas de gordura.
Tenho também o Formula Dê, com mais umas pistas que comprei a avulso. Aqui a cerveja será a bebida mais natural para ir adornando a prova, até porque uma corrida demora uma eternidade e não é meu intuito que a malta fique bêbada e chata. Camarões não eram mal pensados, mas a gordura e o cheiro a marisco tendem a estragar a festa. É que gordura e tabuleiros de cartão não é das combinações mais felizes que o homem pode criar.
Por fim, para os noviços, o Ticket to Ride – Marklin, que é um jogo para miúdos e graúdos que acaba por se dar bem com Coca-Cola e Sumol e uns doces.Na verdade este é um post completamente inútil, mas acabada esta fase de exames, estou tão aliviado que me apetecia escrever qualquer coisa.